terça-feira, 23 de abril de 2013

O segredo pode estar na próxima reunião



                                                       



   
Qualquer vício carrega preconceitos e julgamentos. Mas dentro da Sala, opiniões não são permitidas. Bem vinda a Mulheres que Amam Demais Anônimas.



“Quando um relacionamento é destrutivo ela é capaz de abandoná-lo sem experimentar uma depressão mutiladora”
Em uma sala pequena, sem janelas, cerca de dez cadeiras estão posicionadas formando um semicírculo. De frente para a porta, do outro lado do ambiente, está uma mesa coberta com uma toalha lilás. Em cima, há dois livros posicionados para os assentos, apoiados por um suporte, como em uma vitrine: “Mulheres que Amam Demais” e “Meditações Diárias para Mulheres que Amam Demais”, ambos da autora norte-americana Robin Norwood. Entre outros objetos como papéis, apostilas e cartões, há, no centro da bancada, próximo à borda, uma caixa de lencinhos de papel.
“Oi, meu nome é Ana*, eu sou uma Mada em recuperação e só por hoje estou coordenando essa reunião”. Sua apresentação é interrompida pelo tradicional coro “Oi, Ana”, entoado pelas dez mulheres que estão presentes. Nesse momento, todas as cadeiras estão ocupadas. Um grupo misto de senhoras e jovens presta uma atenção verdadeira, quase vidrada, no que aquela mulher tem a dizer. Loira, aparentando pouco
mais de quarenta anos, calças jeans justas escuras e uma blusa social, a mulher fala de forma tranquila e engajada sobre a importância do anonimato, enquanto lê um bloco de papel encadernado. “Lá fora, nós somos julgadas, discriminadas e incompreendidas. Aqui dentro, abrimos nossos corações. Por isso, se eu passar na rua, e não te cumprimentar, não fique com raiva de mim. É uma escolha minha de preservar minha identidade lá fora”. Todo o discurso inicial está escrito numa apostila, que serve como guia das reuniões.
O grupo Mulheres que Amam Demais Anônimas (Mada) se define como uma Irmandade que oferece apoio mútuo para aquelas que estão envolvidas em relacionamentos destrutivos. Através de táticas provindas do primeiro grupo desse tipo, os Alcoólicos Anônimos, elas usam os “instrumentos de recuperação”, como o anonimato, o “amadrinhamento”, a literatura, os serviços e as reuniões para se livrar de sua adição, o amor excessivo. O grupo foi criado a partir do livro de 1985 de Robin Norwood, uma terapeuta familiar que intitulou as mulheres aditas em ser parceiros dessa forma. No final da publicação ela sugere abrir Irmandades para dar apoio àquelas que amam demais. O Brasil conta com 45 grupos. Entre todos os Estados e capitais, o Rio de Janeiro é a que conta com mais reuniões. São dez espalhadas pelas quatro zonas da cidade.
Após se apresentar, a coordenadora pergunta se há alguém participando da reunião pela primeira. As cadeiras rangem. Duas mulheres levantam as mãos timidamente. Uma tem por volta de 25 anos, negra, com o cabelo no estilo “blackpower”, usando uma tiara. A outra é de meia idade, se integrando visualmente melhor ao resto do grupo. Camisa polo e óculos da moda, a senhora usa o cabelo alisado e tingido de loiro. “Hoje, vocês são as pessoas mais importantes dessa sala”, comunica Ana, voltando-se diretamente para elas. “Entrar por essa porta foi um milagre, permanecer é só trabalho”. Esses dois lemas, que servem como frases rápidas de apoio e contenção são frequentemente repetidas assim como “Hoje é um dia que não volta mais”. As expressões “só por hoje”, “Irmandade”, “companheiras” e “Poder Superior” também são típicas do grupo.
Após a leitura de uma das doze tradições, que refletem sobre os relacionamentos, o grupo é aberto para comentários sobre o texto e depois para depoimentos. Nesse momento, a sala já recebeu mais umas cinco pessoas. Elas foram acomodadas em novas cadeiras, trazidas pelas Madas mais antigas que, já acostumadas com a dinâmica, saíam da sala em silêncio para pegar assentos em outras dependências da Igreja na qual as reuniões são realizadas.
Ana é uma Mada há quase cinco anos, sem que seus conhecidos saibam. Ela chegou meia hora antes da reunião, para arrumar a sala. Ela está no serviço de coordenadora, assim como existem os de tesoureira e secretária. Todo o serviço é voluntário e não há hierarquia. Enquanto faz café, ajeita os livros e carrega cadeiras, conta porque o grupo se torna tão especial para aqueles que o frequentam. Segundo ela, a parte mais importante é o depoimento. “Sem estar na Sala, o Mada não funciona. Você pode ler todos os livros, saber todos os princípios, mas o que vai fazer diferença são os
depoimentos, que funcionam como espelhos. Essa irmandade é um presente porque você vê como outras pessoas saíram de suas crises e lidaram com os problemas. Na terapia, você está sozinho. O analista não vai te dizer como agir. Aqui é tudo mais objetivo, você começa a ficar o tempo todo atenta para não reproduzir o que foi dito nas reuniões”.
“Ela aceita os outros como são, sem tentar modificá-los para satisfazer suas necessidades”
Em uma sala num prédio há apenas duas ruas de distância de onde os encontros do Grupo acontecem, localiza-se o Centro Médico Leblon. É nele que o psicólogo Sócrates Nolasco recebe seus pacientes. Numa sala típica para as sessões, com sofás confortáveis e um divã, ele senta-se na poltrona de maneira displicente e fala sobre o assunto de forma pausada e pensativa. Para o terapeuta, as reuniões tem uma importância capital no tratamento de pessoas adictas por três razões: “Esses grupos funcionam inicialmente como uma forma de contenção daquilo que o sujeito não consegue barrar nele mesmo e se transforma num tipo de adição. Ao ver que outras pessoas sofrem com coisas semelhantes, ele vai tirando a estigmatizarão da história”, explica Sócrates. Formado em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica e com doutorado na mesma, ele diz que atende algumas mulheres que participam do grupo. “Essas pessoas sabem de seu vício e começam a se achar as piores criaturas do mundo. Além dessa desmistificação, as mulheres conseguem encontrar pessoas que fizeram aquilo que elas estão se propondo a conseguir com elas mesmas: melhorar. O outro aspecto é a estrutura grupalizada em si. Quando as pessoas falam de seus parceiros o tempo todo acabam saturando seus relacionamentos. Pessoas adictas costumam arrebentar seus vínculos, então isso acaba criando um aspecto de solidão que piora ainda mais a situação”.
Para Sócrátes, o Mada ajuda. Até certo ponto. “O que um analista faz é dar uma significação às razoes pelas quais há esse desejo que não consegue ser reprimido, e de
que modo elas podem atuar sobre o próprio desejo, no sentido de poder conduzi-los em direções melhores e mais positivas, como se fosse num mergulho. O Mada não vai fazer isso. Ele vai até um determinado ponto, que é exatamente aquele que cada um tem que ver sozinho, a razão pela qual se colocou naquela situação”.




A sala está apinhada de gente, duas pessoas seguem sentadas no chão. “Agora que nós comentamos a primeira tradição, a reunião está aberta para depoimentos. Aquelas que quiserem compartilhar levantem as mãos que eu vou anotar os nomes”. Várias pessoas erguem os braços. No Mada, não é permitido dar conselhos ou comentar o depoimento das outras companheiras. Elas são apenas espelhos umas das outras. Não querem ser julgadas nem por aquelas com quem compartilham tanto. Cada pessoa tem cinco minutos para falar. Duas plaquinhas se levantam repetidamente durante toda a noite “Você tem 2 minutos” e “Tempo encerrado”.
A atmosfera do Mada depende muito dos depoimentos. Algumas vezes os assuntos são extremamente tocantes, e passam pelas mais diferentes situações, como abuso sexual, violência doméstica, tentativas de suicídio e envolvimento com drogas. Outras vezes, as sessões se parecem mais com o imaginário popular que se tem do Mada, com mulheres contando histórias que beiram à comicidade, onde perseguem seus homens de táxi pelas ruas do Rio, procurando-os onde eles disseram que iam estar. E normalmente não os encontrando. O que seria uma situação triste, tanto pelo sentimento de traição quanto pela recaída em ter atitudes contra as quais se luta, acaba rendendo algumas gargalhadas.
São 20h. Um intervalo deveria ser feito, onde as Madas conversam livremente pela sala, tomando café e comendo biscoito. Toda a estrutura do grupo é bem desenhada. Quando alguém chega atrasado, entra em silêncio, sem falar com as outras. Conversas paralelas quase não acontecem. O intervalo, porém, foi suspenso. “Devido a quantidade de pessoas para compartilhar sugiro não fazermos o intervalo. Quem quiser se servir, pode se levantar durante a reunião. Levantem a mão as que aprovam”. A maioria aprova. O grupo segue com as apostilas.
Depois de arrumar a sala para a reunião, esperando as companheiras chegar, Ana define as interpretações do que é amar demais, como bizarras. “Nós não somos malucas, nem somos aquela mulher retratada pelo Manoel Carlos, que chamamos de Helôlouca. Nós estamos aqui porque precisamos de ajuda, estamos tentando uma recuperação de uma adição. A gente parte do princípio que não viemos para cá por acaso, mas somos praticamente todas oriundas de um lar disfuncional”.
Na sala, um papel plastificado com as “10 características de uma mulher que se recuperou de amar demais”, circula. O número 8 diz “Quando um relacionamento é destrutivo ela é capaz de abandoná-lo sem experimentar uma depressão mutiladora”. Conseguir identificar um vínculo ruim e mesmo assim continuar nele é a premissa para aqueles que vem procurar ajuda. Esse vínculo, para Sócrates Nolasco, é o que define a dependência. O objeto é variável entre drogas, álcool ou outra pessoa.
“A conexão é sempre via emocional, o objeto que vai variar. A adição se caracteriza por ser um tipo de vínculo em que o objeto de adição vai manter o adicto o em um mundo de fantasia e é como se ele desejasse transformá-lo em realidade. Por isso o “amar demais” é quase uma relação mágica. É como se o adicto pensasse ‘eu vou amar tanto, mas tanto que um dia vou transformar essa pessoa naquilo que eu desejo’”.
A grande sacada é perceber quando um relacionamento se torna destrutivo. Essa é a segunda característica daquela mulher que se recuperou, e um conceito psicológico básico “Ela aceita os outros como são, sem tentar modificá-los para satisfazer suas necessidades”.
“O destrutivo olha para a parceira ou parceiro não sendo aquele ou aquela que eles são, mas aquele ou aquela que eles gostariam que eles fossem. Esses ‘gostaria que fossem” vai ser cada vez mais alimentado por uma dedicação e disponibilidade para o amor sem limite. O objetivo disso é a cura, uma salvação. “Como se aquela pessoa projetada pudesse curar o adicto do que lhe faltou” comenta Sócrates.
Mas o que é isso que faltou? O psicólogo explica que, o que mais diferencia o Mada de um tratamento com terapeuta é que o segundo trata essa adição como algo não só voltado para os relacionamentos sexo-afetivos, mas numa proporção mais ampla, que está diretamente relacionada com o passado do indivíduo. Embora o ciúme seja a principal palavra relacionada ao Mada no ideário popular, é só participar de uma reunião para reconhecer que a principal questão é carência afetiva.
“O que vai produzir a adição, se formos considerar uma perspectiva de desenvolvimento do vínculo afetivo, vai ter relação com as pessoas que vão funcionar como cuidadoras no começo da vida. Um bebê quando nasce não tem a capacidade de garantir sua segurança e proteção e precisa de alguém, normalmente o pai e a mãe. Esses cuidados vão fazer com que esses bebês tentem trazer essas pessoas para dentro deles, porque elas são necessárias. Como essa ‘operação’ não é possível, a saída é se vincular a essas pessoas que cuidam. Quando algo falta nessa relação, essa “falta” pode levar a um baixo grau de ansiedade ou de angustia, viabilizando a situação e uma possível resolução do problema; ou a falta pode causar muita angustia, por se instalar em momentos primitivos ou viscerais na vida de cada um, gerando no sujeito desamparo e abandono, influenciando que ele, posteriormente, lance mão de uma adição”.
Do lado de fora da Igrejinha, o tempo começa a virar. A noite de verão vai recebendo uma chuva fina. Dentro da Sala, as luzes artificiais impedem essa percepção, mas as mulheres vieram preparadas. Várias sombrinhas se amontoam em um canto da sala. A Sétima tradição é apresentada. Nela se explica que o Mada é um grupo independente, e por isso precisa de recursos. Uma cestinha lilás, como o resto da decoração da sala, é passada e as mulheres depositam algum dinheiro. “As que veem pela primeira vez, devem se abster”, continua Ana.
“Agora aquelas que vieram pela primeira vez podem dizer seus nomes, como chegaram e compartilhar o que quiserem”. A senhora de óculos e camisa polo decidiu falar. Ela
explicou, entre risos sem graça após seu nome ser repetido por todas, que estava feliz de ver que não era a única sentindo que tinha um buraco enorme no peito, referindo-se à história da mulher do táxi. Aí se apresentou a primeira experiência de espelho dessa mulher. Se reconhecer no outro, e a partir desse momento ter algum tipo de apoio.
A reunião está quase acabando. Ana pede que as novas participantes voltem para mais cinco reuniões, completando a quantidade de seis. Esse é o número estipulado pela literatura da criadora do grupo, Robin, para que as mulheres se deem a chance de saber se pertencem ao grupo ou não. São entregues fitinhas brancas para as novatas, que representa a ida ao grupo para procurar ajuda: o primeiro passo. Assim como as fichas dos Alcoólicos Anônimos, elas utilizam a oração da serenidade, o abraço coletivo e a ideia da ausência de cura eterna, mas da contenção diária. Ao sair da sala, você já pode se considerar uma Mada, e em qualquer outra reunião que participar, não será mais sua primeira vez. “Você pode não ter ouvido o que precisava hoje. Mas o segredo está na próxima reunião”.
As mulheres terminam o encontro com uma oração na qual são instruídas a olharem uma nos olhos das outras, de mãos dadas. As cadeiras voltam aos seus lugares, algumas trocam cartões e telefones, outras vão cumprimentar as desconhecidas, se apresentando. Todas, sem exceção, parecem satisfeitas. Só por hoje.
*O nome da coordenadora da sessão foi trocado para preservar sua identidade.

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