terça-feira, 23 de abril de 2013

A Baiana da Noitada


Da Bahia para o Rio, uma aventureira que sempre teve como companhia a música

Fui recebida com um sotaque carregado. Mais de 30 anos depois de chegar ao Rio, Cély Leal ainda tem a fala mansa baiana. “Venha, pode entrando, minha linda”. Simpática desde o abrir da porta, ela me recebe para falarmos sobre seu documentário lançado em 2010, Noitadas de Samba – Foco de resistência. O apartamento é amplo e colorido, com gravuras penduradas nas paredes e sofás confortáveis com almofadas. Até o ar parece ser baiano e o tempo corre mais lento no ambiente. Cély, sentada em frente a uma mesa de vidro e próxima ao computador, dispensa um cigarro no cinzeiro, que já contém várias guimbas. Acende outro e, enquanto traga e a fumaça sai serelepe de seus lábios, conta sua história e as histórias por trás do evento marcante para o samba e para sua própria vida.
As Noitadas de Samba foram realizadas por treze anos, todas as segundas feiras no Teatro Opinião, em Copacabana, na galeria conhecida como Shopping dos Antiquários. O evento foi uma iniciativa de Jorge Coutinho e Leonides Bayer e trouxeram, pela primeira vez o samba para a Zona Sul do Rio. Diversos cantores foram descobertos no Teatro, assim como gravaram seus primeiros discos e saíram do país graças a divulgação que ali ocorria. Além da disseminação do samba, era um reduto de liberais e artistas e virou um local daqueles que lutavam a duras penas contra a ditadura militar. Foi também no local que Cély começou sua carreira no Rio de Janeiro.
A primeira vez que Cély ouviu falar das Noitadas, ela não poderia imaginar que iria se juntar ao grupo. Em 1971, ainda em Salvador, estudante de jornalismo da Federal da Bahia, ela ouviu de amigos que o evento era a cara dela. Uma mistura, um alegria, uma chama nascendo. Em uma viagem para o Rio, no ano seguinte, é apresentada a Bayer. Este se diz produtor e quer levar um evento a Salvador para qual a jovem jornalista, que trabalhava no momento no Tribuna da Bahia, se disponibiliza para ajudar. “Anotei todos os meus contatos num guardanapo e entreguei a ele”, conta ela rindo.
Nessa época, Cély estava sempre no Rio, mas ainda não tinha conseguido ver um espetáculo. As Noitadas já tinham se tornado ponto obrigatório dos interessados em cultura. Era quase um ponto turístico como outros tantos na cidade. Em Salvador, colaborou com a produção de Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos.
Até que em 1978 e ela veio morar no Rio de Janeiro. A explicação para mudança drástica de vida me pega de surpresa. É aquela que todo jovem já pensou um dia. Uma mudança radical, uma guinada. Um “Sei lá” bem grande. “Não vim fazer nada específico. Vim viver um pouco aqui, sabe?”. Desembarcando à capital cultural do país, ela fica hospedada com Pereira dos Santos e tem contato com o João das Nevez, diretor do Teatro. Ali começa uma amizade e uma parceria, que vai resultar em anos de Noitada de Samba.
Chegou, finalmente a primeira vez de Cély no Teatro Opinião. Era um show da Dona Ivone de Lara e ela foi como acompanhante de um amigo que ganhara o ingresso. Ela conta da confusão, da multidão, da alegria das pessoas, todos com seus copos na mão. A partir daí, ela não parou mais de frequentar o local. “Trabalhei na bilheteria, na administração, fazia de tudo um pouco. Então nessa época mesmo eu tive o desejo de fazer um registro. Mas era com a intenção de levar para as pessoas da minha cidade verem, porque eu achava tudo incrível. Queria mostrar e dizer 'olha que coisa linda que eu estou vendo no Rio de Janeiro'”.
E era lindo. Ao assistir o DVD, as imagens não negam a harmonia que havia entre os artistas. No livro autografado, ela diz “Gisele, você vai conhecer uma história fascinante e poder contar aos outros. Sucesso! Beijos e Axé”. Bem, eu conheci. A do samba e a dela.
Olhando as fotos do livro sobre a mesa, Cély fala de uma forma apaixonada sobre esses tempos. A alegria da baiana é presente em todo canto. Ao pedir uma foto, ela passa algumas em seu computador. Para em uma e fala. “Quero te dar essa aqui. Essa aqui sou eu”. Na foto ela sorri sem pudor, divertida.
Cély esteve desde criança em contato com a música. No Bairro de Brotas, uma vizinhança afastada do centro. Seu pai, um violeiro, colocou um serviço de autofalante no bairro, para democratizar a música que ouviam em casa. O pai tinha relações com artistas e políticos da região o que fazia a casa, um recinto de festas. A mãe tinha uma bela voz e fazia as tarefas da casa sempre cantando. Ficava ainda criança, colocando os discos na vitrola e encantada por estar fornecendo diversão ao bairro. Quando trabalhava no Teatro, quiseram que ela fosse cantora. “Eu olha que eu quase aceitei...”
O projeto do documentário demorou mais de dez anos para ser de fato produzido. “Corri muito atrás, mas as empresas não estavam interessadas em patrocinar. Até que a Petrobrás soube através de uma matéria publicada, e eles entraram em contato comigo e me patrocinaram. Isso foi em 2007”, comenta Cély. De lá para 2010, o filme que seria um curta metragem com um folheto, se transformou num longa com mais de uma hora e um livro de 100 páginas, recheado de fotos. O evento que percorreu metade da vida profissional da jornalista ganhou vida para as novas gerações.
Estão no documentário grandes nomes da MPB e do samba, que participaram desse movimento. Dona Ivone Lara, Alcione, Arlindo Cruz, Beth Carvalho, Xangô da Mangueira,Martinho da Vila e mais algumas dezenas de artistas que trazem seus depoimentos para reproduzir o ideário das noites que duraram 13 anos, estão presentes. “Durante as entrevistas, o que mais me emocionou foi a fala do Xangô da Mangueira, porque ele estava muito doente e eu percebi que estávamos perdendo um grande baloarte. Todo o processo foi muito emocionante, porque todos foram muito receptivos, dizendo que era uma maravilha, que essa história não podia morrer”, conta.                     

Quando perguntada sobre o samba hoje, Cély para um momento para refletir. Depois de uma pausa e um suspiro que poderia soar como de decepção, ela retoma vivaz “O samba graças a deus está aí”. Ela comenta que a juventude está curtindo e que tem muita coisa boa. Mas como toda coisa que cresce muito, tem o que é bom e o que não é. Ela não diz isso com pesar, mas com naturalidade. E reafirma que o samba hoje deve muito ao evento que tanto amou.
No ápice na década 70, uma geração inteira cantava a esperança da liberdade tão presente na música e no samba do Teatro Opinião. O documentário reflete a vida dessa mulher, e narra um pouco da história de alegria e luta da qual ela participou e se esforçou tanto para compartilhar. 

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